domingo, 29 de março de 2015


ANÁLISE E CRÍTICA LITERÁRIA
110 CADERNOS DO CNLF, VOL. XII, Nº 14
Grandes são os desertos, e tudo é deserto.
Grande é a vida, e não vale a pena haver vida.
Arrumo melhor a mala com os olhos de pensar em arrumar
Que com arrumação das mãos factícias (e creio que digo bem).
Acendo um cigarro para adiar a viagem,
Para adiar todas as viagens,
Para adiar o universo inteiro.
Volta amanhã, realidade!
Basta por hoje, gentes!
Adia-te, presente absoluto!
Mais vale não ter que ser assim.
Comprem chocolates à criança a quem sucedi por erro,
E tirem a tabuleta porque amanhã é infinito.
Mas tenho que arrumar a mala,
Tenho por força que arrumar a mala,
A mala.
Não posso levar as camisas na hipótese e a mala na razão.
Sim, toda a vida tenho tido que arrumar a mala.
Mas também, toda a vida, tenho ficado sentado sobre o canto das camisas
empilhadas,
A ruminar, como um boi que não chegou a Ápis, destino.
Tenho que arrumar a mala de ser.
Tenho que existir a arrumar malas.
A cinza do cigarro cai sobre a camisa de cima do monte.
Olho para o lado, verifico que estou a dormir.
Sei só que tenho que arrumar a mala,
E que os desertos são grandes e tudo é deserto,
E qualquer parábola a respeito disto, mas dessa é que já me esqueci.
Ergo-me de repente todos os Césares.
Vou definitivamente arrumar a mala.
Arre, hei de arrumá-la e fechá-la;
Hei de vê-la levar de aqui,
Hei de existir independentemente dela.
Grandes são os desertos e tudo é deserto,
Salvo erro, naturalmente.
Pobre da alma humana com oásis só no deserto ao lado!
Mais vale arrumar a mala.
Fim. (PAC, p. 184-185)
Mesmo com a constatação de que arruma melhor a mala apenas
no pensamento, sabe que não é apenas no pensamento que a sua .